segunda-feira, 30 de maio de 2011

Artista e empresário, muito prazer!

Petrus Paulus Rubens

Artista, empreendedor, empresário. A tríplice de atribuições até pouco tempo inimaginável no cotidiano dos realizadores culturais ganhou destaque na abertura do  seminário “A Sociedade em Rede e o Teatro”, realizado na última sexta-feira no Santander Cultural, em Porto Alegre. No lançamento do projeto Vivo Encena na Capital gaúcha, representantes do teatro e de outros setores artísticos refletiram sobre uma questão essencial para o cenário da produção cultural no Brasil: afinal, negócios culturais sustentáveis são possíveis?
A pergunta lançada na palestra de Leonardo Brant é daquelas que provocam o exercício da reflexão e da desconstrução.  A complexidade do tema, historicamente problemático no Brasil, certamente não permitiria a elaboração de respostas simplistas, ao estilo manjado dos manuais que pipocam nas prateleiras das livrarias. Mas também não se trata de uma equação impossível de ser resolvida. Na avaliação do pesquisador, a classe artística precisa se despir de alguns preconceitos e se dispor a encarar a produção cultural também como um negócio.
É essa perspectiva que permite, por exemplo, a implementação de planejamento estratégico, essencial para o sucesso de qualquer projeto que envolva investimento financeiro e relacionamento com o público consumidor. Com adaptações, claro. Um grupo teatral não precisa copiar os modelos administrativos clássicos, entretanto pode encontrar em conceitos e processos gerenciais já testados inspiração válida para atender as especificidades do seu negócio.
O estudo e o debate da economia da cultura são recentes no Brasil, e é provável que resulte dessa áurea de novidade a inquietação – e as dúvidas – dos realizadores diante do assunto. Ao mesmo tempo, as cifras movimentadas pelo setor mostram que é preciso se aventurar em outras esferas do conhecimento e alimentar o empreendedorismo para se inserir qualitativamente no circuito de produção e circulação de bens culturais.  “O mercado cultural é o que mais cresce no mundo hoje”, destacou Brant, chamando a atenção para as possibilidades abertas aos profissionais da cultura.
Nesse cenário, a dica do pesquisador é tirar o melhor proveito possível da sociedade em rede. O termo que intitula o livro lançado nos anos 1990 pelo espanhol Manuel Castells vem sendo amplamente utilizado para definir o novo modelo de relação social. A difusão de diversas ferramentas de comunicação móveis aliada ao surgimento de redes sociais virtuais permite que o indivíduo construa relações não mais limitadas ao seu contexto geográfico.
As redes virtuais parecem ilimitadas e variam de acordo com o interesse de cada um. Ao mesmo tempo, o indivíduo tem a chance de experimentar o papel de mídia. “Hoje os códigos culturais estão mais democráticos e ao alcance de mais pessoas”, explica Leonardo Brant. Nas redes, seja Facebook, Youtube ou Twitter, todos podem falar, criar e, às vezes por sorte, outras por talento, serem vistos.
Aos que olham com alguma desconfiança para o circuito virtual, Brant lembra que uma  rede não se faz apenas com ferramentas tecnológicas. Colegas de profissão e pessoas com interesses semelhantes podem se tornar colaboradores, dividir projetos e tornar uma produção cultural mais sustentável.  E, caro produtor,  não se preocupe com um grande número de peças estreando na sua cidade e muito menos inveje a popularidade de outros grupos. É quem está na fila para ver a peça do colega que logo irá comprar ingresso para conhecer o seu trabalho.
Publicado pela jornalista Karine Ruy em 17/05/11.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cyberpunk de Chinelos


Laboratórios do pós-digital por Felipe Fonseca

O mundo virou cyberpunk. Cada vez mais as pessoas fazem uso de dispositivos eletrônicos de registro e acesso às redes – câmeras, impressoras, computadores, celulares – e os utilizam para falar com parentes distantes, para trabalhar fora do escritório, para pesquisar a receita culinária excêntrica da semana ou a balada do próximo sábado. Telefones com GPS mudam a relação das pessoas com as ideias de localidade e espaço. Múltiplas infraestruturas de rede estão disponíveis em cada vez mais localidades. Essa aceleração tecnológica não resolveu uma série de questões: conflito étnico-cultural e tensão social, risco de colapso ambiental e lixo por todo lugar (em particular o Lixo Eletrônico, que no Brasil ainda está longe de ter o tratamento adequado), precariedade em vários aspectos da vida cotidiana, medo e insegurança em toda parte. Mas ainda assim embute um grande potencial de transformação.
O rumo da evolução da tecnologia de consumo era óbvio até há alguns anos – criar mercados, extrair o máximo possível de lucro e manter um ritmo autossuficiente de crescimento a partir da exploração de inovação incremental, gerando mais demanda por produção e consumo. Em determinado momento, a mistura de competição e ganância causou um desequilíbrio nessa equação, e hoje existem possibilidades tecnológicas que podem ser usadas para a busca de autonomia, libertação e auto-organização - não por causa da indústria, mas pelo contrário, apesar dos interesses dela. As ruas acham seus próprios usos para as coisas, parafraseando William Gibson. Em algum sentido irônico obscuro, as corporações de tecnologia se demonstraram muito mais inábeis do que sua contrapartida ficcional: perderam o controle que um dia imaginaram exercer.
O tipo de pensamento que deu substância ao movimento do software livre possibilitou que os propósitos dos fabricantes de diferentes dispositivos fossem desviados – roteadores de internet sem fio que viram servidores versáteis, computadores recondicionados que podem ser utilizados como terminais leves para montar redes, telefones celulares com wi-fi que permitem fazer ligações sem precisar usar os serviços da operadora, videogames que se tornam estações multimídia. Um mundo com menos intermediários, ou pelo menos um mundo com intermediários mais inteligentes – como os sistemas colaborativos emergentes de mapeamento de tendências baseados na abstração estatística da cauda longa.
Por outro lado, existe também uma forte reação. Governos de todo o mundo – desde os países obviamente autoritários como o Irã até algumas surpresas negativas como a França – têm tentado restringir e censurar as redes informacionais. O espectro do grande irmão, do controle total, continua nos rondando, e se reforça com a sensação de insegurança estimulada pela grande mídia – a quem também interessa que as redes não sejam assim tão livres.
Nesse contexto, qual o papel da arte? Em especial no Brasil, qual vem a ser o papel da arte que supostamente deveria dialogar com as tecnologias – arte eletrônica, digital, em “novas” mídias? Veem-se artistas reclamando e demandando espaço, consolidação funcional e formal, reconhecimento, infraestrutura, formação de público. São demandas justas, mas nem chegam a passar perto de uma questão um pouco mais ampla – qual o papel dessa arte na sociedade? Essa “nova” classe artística tem alguma noção de qual é a sociedade com a qual se relaciona?
Aqui no Brasil é recorrente uma certa projeção dos circuitos europeus de arte em novas mídias, como se quisessem transpor esses cenários para cá. Não levam em conta que todos esses circuitos foram construídos a partir do diálogo entre arte e os anseios, interesses e desejos de uma parte da população que é expressiva tanto em termos simbólicos como quantitativos. Se formos nos ater à definição objetiva, o Brasil não tem uma “classe média” como a europeia. O que geralmente identificamos com esse nome não tem escala para ser “média”. Aquela que seria a classe média em termos estatísticos não tem o mesmo acesso a educação e formação. É paradoxal que a “classe artística” demande que as instituições e governo invistam em formação de audiência, mas se posicione como alheia a essa formação, como se só pudesse atuar plenamente no dia em que a “nova classe média” for suficientemente educada para conseguir entender a arte, e suficientemente próspera para consumi-la.
Muita gente não entendeu que não só o Brasil não vai virar uma Europa, como o mais provável é que o mundo inteiro esteja se tornando um Brasil - simultaneamente desenvolvido, hiperconectado e precário. Não entendeu que o Brasil é uma nação cyberpunk de chinelos: passamos mais tempo online do que as pessoas de qualquer outro país; desenvolvemos uma grande habilidade no uso de ferramentas sociais online; temos computadores em doze prestações no hipermercado, lanhouses em cada esquina e celulares com bluetooth a preços acessíveis, o que transforma fundamentalmente o cotidiano de uma grande parcela da população – a tal “nova classe média”. Grande parte dessas pessoas não tem um vasto repertório intelectual no sentido tradicional, mas (ou justamente por isso) em nível de apropriação concreta de novas tecnologias estão muito à frente da elite “letrada”.
Para desenvolver ao máximo o potencial que essa habilidade espontânea de apropriação de tecnologias oferece, precisamos de subsídios para desenvolver consciência crítica. Para isso, o mundo da arte pode oferecer sua capacidade de abrangência conceitual, questionamento e síntese. Vendo dessa forma, as pessoas precisam da arte. Mas a arte precisa saber (e querer) responder à altura. Precisa estar disposta a sujar os pés, misturar-se, sentir cheiro de gente e construir diálogo. Ensinar e aprender ao mesmo tempo. Será que alguém ainda acredita nessas coisas simples e fundamentais?

Felipe Fonseca é pesquisador e articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa e livre, mídia independente, software livre e apropriação crítica de tecnologia.