sexta-feira, 20 de maio de 2011

Cyberpunk de Chinelos


Laboratórios do pós-digital por Felipe Fonseca

O mundo virou cyberpunk. Cada vez mais as pessoas fazem uso de dispositivos eletrônicos de registro e acesso às redes – câmeras, impressoras, computadores, celulares – e os utilizam para falar com parentes distantes, para trabalhar fora do escritório, para pesquisar a receita culinária excêntrica da semana ou a balada do próximo sábado. Telefones com GPS mudam a relação das pessoas com as ideias de localidade e espaço. Múltiplas infraestruturas de rede estão disponíveis em cada vez mais localidades. Essa aceleração tecnológica não resolveu uma série de questões: conflito étnico-cultural e tensão social, risco de colapso ambiental e lixo por todo lugar (em particular o Lixo Eletrônico, que no Brasil ainda está longe de ter o tratamento adequado), precariedade em vários aspectos da vida cotidiana, medo e insegurança em toda parte. Mas ainda assim embute um grande potencial de transformação.
O rumo da evolução da tecnologia de consumo era óbvio até há alguns anos – criar mercados, extrair o máximo possível de lucro e manter um ritmo autossuficiente de crescimento a partir da exploração de inovação incremental, gerando mais demanda por produção e consumo. Em determinado momento, a mistura de competição e ganância causou um desequilíbrio nessa equação, e hoje existem possibilidades tecnológicas que podem ser usadas para a busca de autonomia, libertação e auto-organização - não por causa da indústria, mas pelo contrário, apesar dos interesses dela. As ruas acham seus próprios usos para as coisas, parafraseando William Gibson. Em algum sentido irônico obscuro, as corporações de tecnologia se demonstraram muito mais inábeis do que sua contrapartida ficcional: perderam o controle que um dia imaginaram exercer.
O tipo de pensamento que deu substância ao movimento do software livre possibilitou que os propósitos dos fabricantes de diferentes dispositivos fossem desviados – roteadores de internet sem fio que viram servidores versáteis, computadores recondicionados que podem ser utilizados como terminais leves para montar redes, telefones celulares com wi-fi que permitem fazer ligações sem precisar usar os serviços da operadora, videogames que se tornam estações multimídia. Um mundo com menos intermediários, ou pelo menos um mundo com intermediários mais inteligentes – como os sistemas colaborativos emergentes de mapeamento de tendências baseados na abstração estatística da cauda longa.
Por outro lado, existe também uma forte reação. Governos de todo o mundo – desde os países obviamente autoritários como o Irã até algumas surpresas negativas como a França – têm tentado restringir e censurar as redes informacionais. O espectro do grande irmão, do controle total, continua nos rondando, e se reforça com a sensação de insegurança estimulada pela grande mídia – a quem também interessa que as redes não sejam assim tão livres.
Nesse contexto, qual o papel da arte? Em especial no Brasil, qual vem a ser o papel da arte que supostamente deveria dialogar com as tecnologias – arte eletrônica, digital, em “novas” mídias? Veem-se artistas reclamando e demandando espaço, consolidação funcional e formal, reconhecimento, infraestrutura, formação de público. São demandas justas, mas nem chegam a passar perto de uma questão um pouco mais ampla – qual o papel dessa arte na sociedade? Essa “nova” classe artística tem alguma noção de qual é a sociedade com a qual se relaciona?
Aqui no Brasil é recorrente uma certa projeção dos circuitos europeus de arte em novas mídias, como se quisessem transpor esses cenários para cá. Não levam em conta que todos esses circuitos foram construídos a partir do diálogo entre arte e os anseios, interesses e desejos de uma parte da população que é expressiva tanto em termos simbólicos como quantitativos. Se formos nos ater à definição objetiva, o Brasil não tem uma “classe média” como a europeia. O que geralmente identificamos com esse nome não tem escala para ser “média”. Aquela que seria a classe média em termos estatísticos não tem o mesmo acesso a educação e formação. É paradoxal que a “classe artística” demande que as instituições e governo invistam em formação de audiência, mas se posicione como alheia a essa formação, como se só pudesse atuar plenamente no dia em que a “nova classe média” for suficientemente educada para conseguir entender a arte, e suficientemente próspera para consumi-la.
Muita gente não entendeu que não só o Brasil não vai virar uma Europa, como o mais provável é que o mundo inteiro esteja se tornando um Brasil - simultaneamente desenvolvido, hiperconectado e precário. Não entendeu que o Brasil é uma nação cyberpunk de chinelos: passamos mais tempo online do que as pessoas de qualquer outro país; desenvolvemos uma grande habilidade no uso de ferramentas sociais online; temos computadores em doze prestações no hipermercado, lanhouses em cada esquina e celulares com bluetooth a preços acessíveis, o que transforma fundamentalmente o cotidiano de uma grande parcela da população – a tal “nova classe média”. Grande parte dessas pessoas não tem um vasto repertório intelectual no sentido tradicional, mas (ou justamente por isso) em nível de apropriação concreta de novas tecnologias estão muito à frente da elite “letrada”.
Para desenvolver ao máximo o potencial que essa habilidade espontânea de apropriação de tecnologias oferece, precisamos de subsídios para desenvolver consciência crítica. Para isso, o mundo da arte pode oferecer sua capacidade de abrangência conceitual, questionamento e síntese. Vendo dessa forma, as pessoas precisam da arte. Mas a arte precisa saber (e querer) responder à altura. Precisa estar disposta a sujar os pés, misturar-se, sentir cheiro de gente e construir diálogo. Ensinar e aprender ao mesmo tempo. Será que alguém ainda acredita nessas coisas simples e fundamentais?

Felipe Fonseca é pesquisador e articulador de projetos relacionados a redes de produção colaborativa e livre, mídia independente, software livre e apropriação crítica de tecnologia.

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